"hoje quero-te ousado..."
" hoje quero-te ousado, não, não te deixarei dormir, a chuva cresce-me, a noite exausta chama pelo teu corpo e eu busco-te entre os lençóis com que Morfeu te envolve. as mãos, as minhas mãos prendem-te os quadris e puxam-te a mim. desejo-te, o meu corpo diz-to de todas as maneiras, dispo-me, para te fazer sentir a pele, os bicos exaltados, as mãos ousadamente ariscas no teu sexo. remexes-te no meio do sono, a chuva cresce, já navegas no prazer da minha busca, choves num sorriso breve. conheço-te, queres-me assim, esperas-me assim todas as noites, ficarias desiludido se não te abordasse como uma qualquer vadia. colada a ti, carne coleante como a da serpente,enrosco-me para te morder as costas, os braços, a nuca vulnerável, o lóbulo da orelha. ouves-me, que te segredo exactamente o que quero que me faças, gemo-te nomes, suplico-te os rituais de que somos capazes. é lua cheia, e chove copiosamente, a lua gemente, o sangue acrescenta febre e fascínio, uivo ao teu ouvido a prece da noite: a oração do teu corpo. viras-me de um só golpe e assaltas-me cioso de cercar dentro de mim a escuridão. gememos corpo a corpo, despenhamos a boca nos lugares de fogo, eu abro-me e deixo-te embeberes-me o sexo, estremeço em cada passagem célere da tua língua em fogo, eu ardente, elevo os quadris, quero-te mais dentro, tu retiras-me a alma, sugas-me o corpo, abates-me o desejo e renovas tudo em outro jogo. as mamas aguardam o ritual a que me sujeitas, sempre diferente, inesperadamente o luar em volta do mamilo, rodeias-me num movimento de translação, em astro lento, a língua a arrastar a carne para o mesmo epicentro onde todo o desejo se acumula, num crescendo. entre as pernas, a caminho das coxas, caminha a tua língua agora cega, com as mãos puxas do ventre para o sexo os últimos fluxos de sangue, já não sinto nada no resto do corpo, sou uma espécie de mata-borrão em branco, a aguardar a impressão deliciosa do teu sexo na minha carne, um volume fulgurante terra adentro, eu trémula e exasperadamente expectante. mas ainda assim retenho a vontade da entrega e busco-te na fome da minha boca, deixo que me cresças mais e mais, as mãos são sábias conhecem-te a fragilidade dos pontos onde te entregas, mexo-te, remexo-te, a chuva escorre, assimilo de ti todos os odores e palmos de pele, entro e reentro nos poros que me dão prazer, arranho e mordo, esqueço-me em ti e perco-me na vastidão do teu corpo. quero-te enfim dentro de mim, na exaltação maior da posse. cubro-te com o meu corpo e deixo-me deslizar para dentro de ti, como se homem eu fosse, domino-te, comando a penetração, entre a abordagem discreta e a entrada forte, até ao fundo dos rins, penduro-me no teu sexo e por um momento paramos para sentir a sensibilidade do outro. os corpos falam, consentem-se, respondem, pulsam, dançam, suspendem-se, apressam-se, param, mudam, experimentam, recomeçam e prendem-se, com a tensão de todos os músculos que, como agulhas penetrantes na pele e no cérebro nos latejam nas fontes, nos olhos e nos artelhos, à medida que nos deixamos exaurir no fundo, mais fundo da carne do outro e chovemos juntos fortemente até à última gota. por instantes só silêncio, as agulhas atingem os olhos e um clarão limpa todo o cérebro, como se nascêssemos dentro de um limbo de nuvens de silêncio. algodoados, distantes e próximos, adormecemos juntos na chuva que já não ouvimos, calada a noite num beijo fundo, o último que damos, a consubstancialização do amor, o mesmo calor, a mesma serenidade, no mesmo sonho presos e soltos. a manhã virá achar-nos docemente envoltos, coxas, pernas, pescoços, no sono vulneravelmente expostos, e é tão importante dizer-te hoje o quanto me apeteces esta noite, e sempre, e amanhã quando desperto, o quanto teço estes momentos de puro amplexo, que o digo sem falsos pudores, conforme o sinto, correndo o risco de tecer lugares-comuns à volta deste momento tão inenarrável e sumamente doce. tudo para te nutrir da minha presença, tudo para que não esqueças que é nosso apenas, apenas meu e teu, agora, mais tarde no tempo, talvez nunca e porém sempre, nosso é, será, foi este íntimo universo de pertença.”
Ana Pontes
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