sábado, junho 16, 2007

I
A aresta azul da noite, cruza-se de viés pelo lado mais fundo, até chegar ao dossel negro do céu, onde as luzes da cidade se afundam. Uma poalha líquida cobre melancolicamente os vidros do carro, à medida que rasgo nocturnas vozes no silêncio que quebro. Caminho-te a direito, contra a face de granito do teu corpo. Tenho-te num retrato da memória pendurado na dianteira do vidro, como se paisagem fosses no deserto do caminho. Todos dormem à passagem deste tempo quase invernoso. Só eu percorro o mundo em busca do amor. Nove anos e sete luas busquei em sete sóis o homem que amei. Sete vezes te encontrei e outras sete te perdi. Agora que te cruzei o peito, não recuo para a fogueira mansa de antes. Toda a minha alma te quer possuir, o mais profundo espaço do meu corpo se funde docemente num langor de ti. Quero-te na cama, na nudez da espera, a cúmplice chuva sob os dedos, em queda lenta a janela embaciada e o teu olhar a caminhar para o galgar do tempo, a hora passa, o corpo não dorme, soam as badaladas da sonolência uma a uma na tua cabeça, mas a espera desce. Quero arpoar o âmbar do teu corpo, introduzindo-me na pele de linho em que te escondes. O leito oscila, no alagado desejo da chegada, o carro trepa a subida, tu moves uma perna e suspiras. Sentes a tua masculinidade, admiras o teu corpo, a vida desce-te onde o tempo te remete. Saboreias a minha pele na tua e sabes da seda do regresso. Eu cheguei, dou-te um beijo enquanto penduro o dia no cabide, contrariedades e alegrias, sorrisos e infâmias, tudo geme, no momento em que te atreves a mim, com a vontade expressa no rosto, o olhar, ah, o teu olhar não me vê, está para além do prazer, uma cegueira que é prazer. De repente o vestido arregaçado, a chave do inferno na fechadura, estamos sós e estamos dentro, a tua mão já galgou as chamas e o rio do esquecimento, introduzes directamente a tua mão no meu sexo e a noite cresce no quarto, voraginosa e lenta...
II
Acabamos no lume apaziguador da pele, tu entras-me no corpo salgado, admoestas-me os seios friorentos, o vestido é fino e a chuva entrou-me pelos poros, trago-te a chuva da minha pele, tu bebes de um trago o desejo obscuro e negro, o frio passou, primeiro veio um cálido suspiro, depois foi lânguido e mais fundo, depois vieram os calores despudorados, eu despojo-me de tudo em teu favor, desalinho-me cabelos e roupa, e mostro-te a verdade do meu corpo. Puxas-me para o leito, onde me montas em toda a pujança do teu sangue, o sangue corre-te mouro ou cigano e eu quero-me pasto dos teus dentes nómadas. Mordes-me toda, da cinta ao seio, do seio à nádega, eu grito de prazer. Mais. Morde-me toda, arranha os ossos como se tivesses esporas e me incitasses a galopar para o fundo da noite e do prazer. Incita-me, à languidez da entrega, martiriza-me para que eu não possa esperar mais pela consumação da posse. Assim te quero. Vieste a mim já teso em frémitos, sem que sequer me deixasses sugar-te todo ao meu jeito. Queres metê-lo dentro numa ânsia inadiável do gizado gozo. Sabes que a noite nos entregou a chave do Inferno e tudo é ser chama e gelo, neve e prazer. Oh! Paramos na eternização do momento. Tensos um no outro, não podemos estar mais tensos. Empurras, empurro, deixamo-nos prender também pelo pescoço num beijo junto à palpitante artéria. Aguças-te, lambes, mordes, mordo, gemes, gemo e puxamos toda a carne para o lugar do outro. O prazer. Gemes, gemo ou grito. Ah, o prazer da posse assim, tremendamente aguda, aguçado desejo de aguçada carne. Gulosas paredes te contêm numa artéria viva, a porta estreita do outro lado, a descida até ao útero da paixão. Abres, rasgas a passagem, tiras e eu lambo e mordo e amasso a tua carne entre os meus dedos. Meu Deus, o teu corpo, que me apetece beijá-lo todo, mergulhar por ti acima, tu deixas que te ame, eu faço.
III
É tarde e eu estou no meio do vórtice, luto para me manter à tona da noite e por que a realidade me deixe de gravitar em redor do corpo, mas tu já há muito te perdeste de mim e avanças para dentro do teu prazer mais fundo, e por um momento, esqueceste-me no zénite da cegueira. Admiro o teu rosto belo, e mais ainda o modo como os teus olhos partem primeiro, vejo-te sobre mim e quero de repente estar totalmente dentro do teu prazer, senti-lo como meu, ser o vértice e a aresta em que te deixas embater, quando te ausentas do olhar. Chamo-te, peço-te que pares, mas o teu barco tem pressa de mergulhar bem fundo no naufrágio, eu só assisto e recebo de ti as voltas bruscas do membro no âmago do meu útero. Pára. Olha-me, sou eu sob o teu corpo, espera-me, envolve-me, embrulha-me no teu prazer, penetra-me pelo lado da noite sem fundo, vagueia-me por dentro como se me lambesses a alma devagarinho, não me fodas só como um homem, come-me como uma iguaria lenta, abisma-me e puxa-me, leva-me e traz-me, mas não partas sem me dosear no eixo do teu prazer. Desculpa, desculpa, gozava ardentemente a tua música, as tuas batidas interiores, a tua seda quente acolhe-me como uma esponja, eu quero morrer no fundo da tua concha. Espera, ainda quero mais, ah, eu paro e recomeço, queres que te atormente, meu amor? E tu recomeças. E eu recomeço e a noite afasta-se para tão longe que só vejo o modo doce e súbito como os teus olhos se ausentam para dentro. E nós voltamos a partir para o fundo aguçado da noite, marginamos a vontade de partir e exaurir toda a liquidez das veias. Mas não vamos. A noite casou-nos dentro do prazer e a chuva não terminou ainda o seu encantamento. Queres-me muito assim? Quero-te todo assim, dentro, ah, que fundo me mexes no corpo, meu amor, eu vou, para voltar a ir, volteia-me agora, arremete-me fundo a tua vontade, eu esfrego-me por ti, abraço a noite em declive, invisto tudo na ponta úmbria e molhada do teu corpo e mordo o que posso, para não gritar o teu nome ao mundo. Tu ainda me queres do avesso da tua vontade. E eu preparo-me para te dar tudo o que do prazer a noite nos puder dar. Enquanto chuva houver, meu amor, enquanto chuva houver.


( Texto enviado por Ana Pontes )