lacrimosa
1. Há uma voz incessante. Um córrego de inverno. Rumoroso de palavras antigas. Com sons novos. Límpidos. Polidos de leito. E aos seixos murmura mistérios da fonte do fundo na terra onde as torgas se esfiapam em artérias de seda. O núcleo. Onde do fogo brota água. E da água brota fogo. O núcleo da comunhão. E essa voz. Que ouço no dia e na noite me conta o incontável em idioma que desconheço ciente só do som. Harmonia. Cadência. Ritmo. Rima que mexe raízes de teixo. E agita a cauda da truta. E baila gaiata nas alpoldras há séculos irrompidas dos pés cuidosos em não pisar águas onde as pontes não são aladas. Voz.
2. A voz. Que me circula e me contorna. A voz que torna. Um arauto de outrora. Uma noite de medo. Uma angústia de vento. As folhas e a toca do castanheiro no extremo do avelanal. A pele casa de castanho soerguidos os braços em cruz e os olhos fechados transpirando terra por meus poros. A voz presente da fraga afagada e do estrénuo limo franzino. Há sons muito antigos e guturais em busca do polimento tal seixo. Ou tal veio do granito azul sob o musgo. E sons de louvar e de gritar. Exorcismos. E a voz da vida grita. E a voz da vida louva. E no grito te louvo e para louvar-te grito. A voz múrmura que ecoa no bosque e na seara. E é canto de condor dos cumes e pio da coruja dos baixios. E riso de duende. E raio de lua. Voa. Voz.
3. Escuto-a todo. E sinto afago e estímulo. Das alturas. E do achego do vale que estreita. Do barro branco da giesta e da águia dançarina. A voz da vertigem. Relutante e sacudida. Decidida e fluida. Espiral de sons. De outras eras e consoantes. São as palavras da pedra da terra. Os sons em que me dobo a tear. A voz. De espuma. De angústia e riso que não refreiam o golfar. E há lírios nessa voz. Hoje lírios. Amanhã teixos. E no covo em que o córrego se mais funda há vozes sombrias e longínquas portadoras das perdidas areias do seixo já de menos perfeito. E a voz escorre. E à noite corre mais silêncio afora. No sono redemoinha camarinhas de suor cansado. E julgo ouvir-te e tento ouvir-te e quero ouvir-te nos sons de quando ainda tinhas corpo. E rosto. Quando hoje sem corpo se perde o rosto. E são vozes a gesto desenhadas apartando o ar e te adejando as pálpebras. O som do gesto. A voz do gesto. O rosto do gesto a voz. A gesta. Voz.
4. Não hei-de perder-te voz. Em ti me embalo. Cântico matricial. Com anáforas renovadas. Ciciadas. Sons confluentes aqui convocados em função essencial. Íntegros. Falas em mim hoje todo o passado em vozes tão plurais que baralham as palavras numa lengalenga perene e incansada. Oração una. Unívoca voz. De monges em milenar convento. Vozes centenárias e às centenas. Rodopiando preces nas celas estreitas brancas na ogiva da nave no campanário dos carrilhões nos claustros longos frios soturnos onde os pássaros pousadas nas oliveiras chilreiam loas aos reis jacentes. Não ouço a tua voz. Nunca mais me chegaram sons da tua voz. E tanto tento deles me lembrar. Nem o ai de alegria me acomete. A voz. A voz essencial. A voz teu espírito e tua imagem teu corpo. Perco tudo. Agoniada perda. Tanto quanto não lembro ninguém presente. E creio serem tão poucos. Já tão poucos. Os presentes. E os ausentes persistentes embrumados indistintos riem no vazio. Voz.
5. O riso é voz. Hoje sei porque te não ouço o riso. Naquele dia que teu corpo se alquebrou e foi. Fiquei para te adornar a nudez. Na sala branca onde tudo era prata. Os armários com os gavetões de corpos sem rocas de alfazema. A maca. As ferramentas. De oficina de corpos sem conserto. E o homem cinzento enquanto eu te penteava engordou-te com levíssimo algodão. E colou-te os lábios num sorrir colado. Não ouço a tua voz por causa do algodão e da cola. E as outras vozes que não ouço e todas aquelas que ouço. Seladas até à corrupção da carne. E os ardidos com um hálito quente. O hálito faz perder tanta voz. O hálito macera a voz. As vozes das litanias dos vocalizos e gritos que me atordoam. Inquietas vozes. Suplicantes. A voz. Que me chama chama. Urgente. Persistente. A voz que ordena e me manda ir por ali. A voz do erro e da razão. A voz da intriga rumoreja. A voz que fixa. A voz. Sarilheira voz.
6. A voz sobreposta aos sons. Aos ruídos. A voz companheira da madrugada. Do dia. Da noite. Da viagem. Sobre óperas se soergue em grito ou choro. Rouquido ai. Para lá de todo o canto belo. Voz companheira que tanto me falas. Me falas por todas as bocas. Todas as línguas. De tantos tempos remota voz. A voz. Que distrai. Atrai. Retrai. Voz bridão. Voz esporim. No flanco do som fremente e cálido. Voz do espasmo. Do nervo que retine e vibra. Do não. Voz do sorriso e da esperança. Da lua. Força e fé. Voz que nega e cega. Voz que ecoa. E há uma voz mais branca que as outras vozes. Albina voz. Que atropela as vogais e as entala com força nas consoantes em estalidos de estímulo e chamada soados a cântico de áfrica. Com areia e sol e noite. Voz que raia. Alba escarlate. Voz.
7. A voz. Que ruge e afia as garras de marfim na pedra. E no lume. Voz que voa olhada. De lince em águia. Voz quente como o deserto e teu ventre. Voz fria como a estepe. Voz de cascos e tropéis. Voz de gritos a arrenegar medos na ponta da lança erguidos. Voz que corre. Voz que voa. Bruta e fera. Voz que choca cota e elmo. A voz que geme. A voz que esvai. E treme. Pai.
8. E na prega mais negra e densa da noite. A voz. Pilão. Martela. Voz que bate a rebate. Esmói. No acto desobrigado. Ciente voz de erro e falta. Faca ríspida. Voz de açoite. Voz que tece e sereia. Voz do mar. Que me falas e faltas. Voz.
9. Espuma e franja. Voz. Balsar de náufrago. Soluço de viúva. Negro xaile de Maria. Gota caída no ar. Onda no mar batida. Capela de dor caiada. Nuvem. Voz azul. Fria. Que repuxa e rapina a força. Cediça voz. Rompão na maré que esgaça. Âncora no lodo rota. Voz que troa. Voz que mata. Voz que voa. E fixa. Grita. Voz.
10. Voz que prendo. Voz que ato. Voz que fecho e nesta escrita teço. Voz que luta e revolteia. Estrebucha e pontapeia. Voz. Voz que domo. Me doma. Voz que dano. Voz do dono. Voz humano. Humano grito. Humano voz que finto. Voz dos arabescos e romanos. Voz que escrevo e escrava nua quedo. Em branco. Voz que guardo e entesouro. Voz que te reservo. Neste vaso. Nesta ânfora. Neste líquido. Voz legado da escrita cativa. Alforria. Alforria. Te deixo voz. Aqui. Para seres ouvida. De viva escrita. Voz.
2. A voz. Que me circula e me contorna. A voz que torna. Um arauto de outrora. Uma noite de medo. Uma angústia de vento. As folhas e a toca do castanheiro no extremo do avelanal. A pele casa de castanho soerguidos os braços em cruz e os olhos fechados transpirando terra por meus poros. A voz presente da fraga afagada e do estrénuo limo franzino. Há sons muito antigos e guturais em busca do polimento tal seixo. Ou tal veio do granito azul sob o musgo. E sons de louvar e de gritar. Exorcismos. E a voz da vida grita. E a voz da vida louva. E no grito te louvo e para louvar-te grito. A voz múrmura que ecoa no bosque e na seara. E é canto de condor dos cumes e pio da coruja dos baixios. E riso de duende. E raio de lua. Voa. Voz.
3. Escuto-a todo. E sinto afago e estímulo. Das alturas. E do achego do vale que estreita. Do barro branco da giesta e da águia dançarina. A voz da vertigem. Relutante e sacudida. Decidida e fluida. Espiral de sons. De outras eras e consoantes. São as palavras da pedra da terra. Os sons em que me dobo a tear. A voz. De espuma. De angústia e riso que não refreiam o golfar. E há lírios nessa voz. Hoje lírios. Amanhã teixos. E no covo em que o córrego se mais funda há vozes sombrias e longínquas portadoras das perdidas areias do seixo já de menos perfeito. E a voz escorre. E à noite corre mais silêncio afora. No sono redemoinha camarinhas de suor cansado. E julgo ouvir-te e tento ouvir-te e quero ouvir-te nos sons de quando ainda tinhas corpo. E rosto. Quando hoje sem corpo se perde o rosto. E são vozes a gesto desenhadas apartando o ar e te adejando as pálpebras. O som do gesto. A voz do gesto. O rosto do gesto a voz. A gesta. Voz.
4. Não hei-de perder-te voz. Em ti me embalo. Cântico matricial. Com anáforas renovadas. Ciciadas. Sons confluentes aqui convocados em função essencial. Íntegros. Falas em mim hoje todo o passado em vozes tão plurais que baralham as palavras numa lengalenga perene e incansada. Oração una. Unívoca voz. De monges em milenar convento. Vozes centenárias e às centenas. Rodopiando preces nas celas estreitas brancas na ogiva da nave no campanário dos carrilhões nos claustros longos frios soturnos onde os pássaros pousadas nas oliveiras chilreiam loas aos reis jacentes. Não ouço a tua voz. Nunca mais me chegaram sons da tua voz. E tanto tento deles me lembrar. Nem o ai de alegria me acomete. A voz. A voz essencial. A voz teu espírito e tua imagem teu corpo. Perco tudo. Agoniada perda. Tanto quanto não lembro ninguém presente. E creio serem tão poucos. Já tão poucos. Os presentes. E os ausentes persistentes embrumados indistintos riem no vazio. Voz.
5. O riso é voz. Hoje sei porque te não ouço o riso. Naquele dia que teu corpo se alquebrou e foi. Fiquei para te adornar a nudez. Na sala branca onde tudo era prata. Os armários com os gavetões de corpos sem rocas de alfazema. A maca. As ferramentas. De oficina de corpos sem conserto. E o homem cinzento enquanto eu te penteava engordou-te com levíssimo algodão. E colou-te os lábios num sorrir colado. Não ouço a tua voz por causa do algodão e da cola. E as outras vozes que não ouço e todas aquelas que ouço. Seladas até à corrupção da carne. E os ardidos com um hálito quente. O hálito faz perder tanta voz. O hálito macera a voz. As vozes das litanias dos vocalizos e gritos que me atordoam. Inquietas vozes. Suplicantes. A voz. Que me chama chama. Urgente. Persistente. A voz que ordena e me manda ir por ali. A voz do erro e da razão. A voz da intriga rumoreja. A voz que fixa. A voz. Sarilheira voz.
6. A voz sobreposta aos sons. Aos ruídos. A voz companheira da madrugada. Do dia. Da noite. Da viagem. Sobre óperas se soergue em grito ou choro. Rouquido ai. Para lá de todo o canto belo. Voz companheira que tanto me falas. Me falas por todas as bocas. Todas as línguas. De tantos tempos remota voz. A voz. Que distrai. Atrai. Retrai. Voz bridão. Voz esporim. No flanco do som fremente e cálido. Voz do espasmo. Do nervo que retine e vibra. Do não. Voz do sorriso e da esperança. Da lua. Força e fé. Voz que nega e cega. Voz que ecoa. E há uma voz mais branca que as outras vozes. Albina voz. Que atropela as vogais e as entala com força nas consoantes em estalidos de estímulo e chamada soados a cântico de áfrica. Com areia e sol e noite. Voz que raia. Alba escarlate. Voz.
7. A voz. Que ruge e afia as garras de marfim na pedra. E no lume. Voz que voa olhada. De lince em águia. Voz quente como o deserto e teu ventre. Voz fria como a estepe. Voz de cascos e tropéis. Voz de gritos a arrenegar medos na ponta da lança erguidos. Voz que corre. Voz que voa. Bruta e fera. Voz que choca cota e elmo. A voz que geme. A voz que esvai. E treme. Pai.
8. E na prega mais negra e densa da noite. A voz. Pilão. Martela. Voz que bate a rebate. Esmói. No acto desobrigado. Ciente voz de erro e falta. Faca ríspida. Voz de açoite. Voz que tece e sereia. Voz do mar. Que me falas e faltas. Voz.
9. Espuma e franja. Voz. Balsar de náufrago. Soluço de viúva. Negro xaile de Maria. Gota caída no ar. Onda no mar batida. Capela de dor caiada. Nuvem. Voz azul. Fria. Que repuxa e rapina a força. Cediça voz. Rompão na maré que esgaça. Âncora no lodo rota. Voz que troa. Voz que mata. Voz que voa. E fixa. Grita. Voz.
10. Voz que prendo. Voz que ato. Voz que fecho e nesta escrita teço. Voz que luta e revolteia. Estrebucha e pontapeia. Voz. Voz que domo. Me doma. Voz que dano. Voz do dono. Voz humano. Humano grito. Humano voz que finto. Voz dos arabescos e romanos. Voz que escrevo e escrava nua quedo. Em branco. Voz que guardo e entesouro. Voz que te reservo. Neste vaso. Nesta ânfora. Neste líquido. Voz legado da escrita cativa. Alforria. Alforria. Te deixo voz. Aqui. Para seres ouvida. De viva escrita. Voz.
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