segunda-feira, outubro 15, 2007

correio da aNa

Há cartas tímidas, trémulas, cartas que temem o que guardam ou guardam o que temem, são cartas de quem, mais do que escrever a alguém, se escreve a si, numa laboriosa monografia dos sentimentos.
Outras há que são factuais e são a sua própria referência, ou que são momentos, impulsos, montanhas, até curvas.
As cartas que podem ser precipícios, essas são normalmente como espelhos, lâminas de facas, afiadas à garganta do remetente, preparadas para atingir também quem as recebe.
Cartas como poços e labirintos, gosto de as percorrer por dentro, pela orla do sujeito, onde o poço mais se suspende.
Gosto e admiro as cartas que se arriscam, gosto da caligrafia lúcida e passional, vincada na letra em riste.
São cartas a talhar gestos, vincados por outras cartas que levam gestos talhados por causa de outras cartas e outras antes dessas.
Há vidas que são como cartas, cartas inesperadas, cartas que nunca se esperam, nem chegam. Outras são desejadas e aguardadas e um dia chegam fora de tempo, são cartas inúteis como os sentimentos idos.
Espadas, algumas cartas ferem e desferem o ricto amargo da espada que se tem apontada à vida.
Ou ao outro.
São cartas amarfanhadas, lidas e relidas, pelos olhos do tempo.
Prefiro-as às cartas vulgares que ficaram por acaso e foram fáticas, factuais, apenas porque era preciso continuar a fingir.
Vibro com cartas secretas e choro sempre quando vejo que o seu momento passou e que a ninguém já interessam.
Eu gosto de cartas.
Todos devíamos escrever cartas com o corpo, com os dedos e com os seios, ou com os lábios, cartas como pontes com pernas ágeis.
Hoje apetecia-me receber uma carta que me falasse das coisas que não sei.
Também me sabia bem rescrever aquilo que tanto sei, mas torneando as palavras como ferro forjado nos varadins da alma.
Porque o difícil é escrever cartas sobre as certezas incertas.
Outro tanto não direi das incertas certezas.
Dizer as coisas é desembrulhar-lhes os rótulos, às vezes trocados.
Quem escreve uma carta convoca-se no tempo, admite-se no outro como presença que se verte lentamente.
Escrever uma carta é como fazer amor com os sentimentos que a gente sente.
A minha vida é uma carta.
Falta-lhe só o remetente.
Escreves-me uma carta?
Um bilhetinho túrgido e urgente, daqueles que são sentenças de vida ou de morte, ou de amor somente, ah, se hoje me escrevesses...
Diz-me: quando escreves, convocas os deuses para a caligrafia nua que desenhas a tinta permanente?
Ou escreves com a inclinação oblíqua do que não sabes se sentes?
aNa