Até amanhã
O mundo é lá fora uma luz crua. E a vida é cá dentro um tédio imenso. Aflige-me o calor como a descortesia. Não sei vontade de falar e só pelo olhar aceito ainda o gosto que perdi. Saio, às vezes, por um impulso vão, um gorjeio de pardal, uma ilusão. Dou voltas num rodopio incerto e não alcanço o que faço ali. Todos me são estranhos, a começar por mim. Assim-assim, a vendedeira de fruta, a menina ruiva do jornal e a tal que m'escalda a chávena de café. Deito-me, às escuras, neste vago leito. Roço, com os pés descalços, o lençol brando. E a almofada toma-me a cabeça como outrora mãos que já perdi. Os olhos que cerro riscam-me os nervos, numa cegueira cínica. Uma revolta, até. Acendo as luzes, corro a persiana, rejeito o dia. Ponho música como água na banheira. Pego num livro e noutro e noutro. Leio três páginas, um capítulo, a capa. Assim ocupo as mãos, já os pés bem quêdos. Perco os óculos. O lápis parte a ponta. O cão olha-me e no olhar-de-cão, a tristeza e a comiseração são-me de uma fidelidade atroz. Risco um desenho. Esta inquietude que me voa nas mãos... Sombreio-o. Acrescento-lhe uma tristeza no olhar e um vinco sério nos lábios, que pinto de bordeaux. Faço sempre os mesmos desenhos. Sou pobre de imaginação e parco de sentir. Escrevo estas palavras e nelas gizo o círculo da minha limitação. Nunca consegui oxímaros excitantes nem metáforas raras. Um descalabro de fim de tarde. Assim sinto todos os fins destas tardes sem fim. Vejo um filme com muitos prémios. Gosto da actriz que caminha como uma varina de coxas quentes e tem o cabelo curto como um efebo grego. Mas o filme, a história, aquela intriga, eu tenho-a melhor na minha vida. Não na vivida. Claro. Na outra. E então, as imagens correm e eu só afago os cabelos loiros daquela cabeça rapada e a teia... a teia já a sei de cor e não me ato nela.
Ouço uma missa, um de profundis, um miserere, um requiem e comovo-me. Depois, o corpo tange a toada da fome e assalto uma taça de morangos (excitam-me os morangos, talvez pela boca que vi no filme ou pela tua boca a que não fiz jus) e bebo um copo cheio de água fresca que me exalta. Deito-me, serenado o corpo, mas o espírito não cessa o latejo de látego nas frontes mansas.Olho para uma mesa cheia de relógios e decuplico o fluir do tempo.Chega a noite e a rua calma apela a uma paz silente. Vou pela estrada fora. Cruzo-me com os faróis dos carros e cheiro as tílias até à náusea. Ando por andar, como andavam dantes os homens. Perdidos, à toa, à caça. Está além a prostituta velha no seu passeio alugado. Ri e acena para os carros velozes. Lá longe, um magote de gente assustada corre para um centro comercial. Atordoados, perdem o medo ao ver-se, à lixiviada luz das montras. Compro um gelado (ou deverei escrever sorvete?) e sorvo-o com o deleite de uma conversa amiga. Daquelas que deixam a boca doce e os lábios húmidos de menta. Cansei as pernas. Talvez o corpo. A cabeça, essa, refervilha de paixão. Corro a casa. Ao meu quarto branco e grande como um mosteiro. A almofada mostra-me o côncavo da minha cabeça ardente. Tomo o comprimido para dormir e leio um livro. Ambos me levarão à alvorada. O cão suspira e manda-me apagar a luz. Ouvimo-nos respirar. Até amanhã.
Viseu, 03 de Julho de 2009.
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