sábado, setembro 29, 2007

idiopatias

Traseira em cauda de pato.
Protecção para o frio e chuva.
Os dois lugares convenientes.
O fino traço da escola estilista italiana, aqui, na voluptuosidade arredondada das linhas.
Nada lhe falta: desde a mala para levar a merenda, até à sacola para os livros, na capa do pneu suplente...
Verdadeiro ícone do pós-guerra, a Lambreta significa antes de mais a evasão ao alcance das massas, significa também a passagem do proletário, da bicicleta à motorizada, e uma década depois, ao automóvel, com o Fiat 500. Estamos no advento da velocidade, da mobilidade. A Vespa, derivação do conceito, simboliza também uma nova rebeldia e autonomia que se gera na juventude. Meio de transporte urbano por excelência, pulula pelas ruas de Roma, Nápoles, Milão, Florença... A aqui presente, azul cueca de origem, modelo raro do início de 60, com 150 cm2, 4 velocidades no punho esquerdo e dois lugares, era o meio de locomoção ideal para levar a namorada. Deixo-vos com o Poema da Auto Estrada, de Rómulo de Carvalho, perdão, António Gedeão, um pastiche do vilancete de Camões:
Se o lerem com atenção... mais coisas descobrirão...
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.
Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingindo,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.
Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.
Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
in Máquina de Fogo.