sexta-feira, junho 27, 2008

fábula

1.
é longo o ressentimento de cão velho
mas esse sentir repetido
e negativo
escasseia.
como a lealdade lhe é vital
o são espaços e afectos.
a todos perdeu o homem.
se mal sente
como ressentir?
o espaço do mundo
na sua infinitude
é-lhe inapropriável
logo
deixa de ser referência.
finalmente
as pessoas
2.
passa tanta gente afora nossas vidas
um modo do vento ganir
junto à mole imensa do seixo branco
astrolábio da noite como outrora teus cabelos
um corvo perdido a voar sem senso
pobre orato a adejar vento
gasto nas arestas da pedra.
3.
recusei a palavra pessoa
porque gente é muita
hesito tanto em contá-la
como em divisar-te na multidão
donde emerge um calor ténue
uma espiral assim coruto de teixo
poiso do corvo
pelourinho onde teus braços m'enleiam
e expõem.
basta-me saber-te lá
e é como ouvir o longo sustenido de um coro.
a gente
4.
sermos dois lençóis de linho cru
guardados dois séculos sem luz
um junto ao outro
num gavetão de castanho encerado
de uma arca do passado
com um segredo por descobrir
na boca cerrada antes de o dizer
e uma ferragem em cobre
onde a última mão deixou o adeus.
5.
uma nuvem
talvez seja uma nuvem
imóvel
apenas de póros abertos
por um beijo de vento
a pensar se dança
ao som de harpa ou guitarra de contar fado.
6.
dói-me o indito
tanto quis contar-te júbilos e agonias
olhar-te por dentro dos olhos
e pairar-te na pele...
mas retive a ousadia
como um abat-jour
e se reter é ter a dobrar
então a tive
e hoje
em vão
-- como aquele ausente no momento exacto
do fim --
(a agonia de morrer só )
com o lamento a cair dentro do peito.
7.
furiosos teus olhos no rosto impávido
(quão bem o sabias fazer e quanto me espantavas!)
mordiam-me a língua inútil
embaraçada no pejo.
8.
ouço hoje mais que tudo
o silêncio irado desse olhar.
9.
um soluço
assim cada palavra.
ou a cabeça negra do argos
pousada no luto do peito.
ora sombra
entre gente
esbatida.
10.
e aqui quêdo as dez palavras
ao sentido de dizer
negadas.
ciente delas
as adivinharás
fel arrulhado.