quinta-feira, julho 03, 2008

Incansável, a mão que escreve…


Boa Noite, Senhor Soares


Vasta é a obra literária de Mário Cláudio.
Num tempo pelos anos não dilatado, Ciclo de Cyprus, poemas, 1969, Sete Solstícios, poemas, 1972, Um verão assim, narrativas, 1974, As máscaras de sábado, novela, 1976… iriam marcar as primícias de uma prolífica criação, que até hoje já deu ao prelo meia centena de obras, entre ficção, poesia, teatro e outras.

Os leitmotivs de um artista são insondáveis sendas que ao leitor atento abrem palco fecundo à construção da conjectura.
Em Mário Cláudio há presentes e, se não isotópicos, bem marcados, a sua Invicta Cidade e, dentro dos géneros narrativos, a biografia romanceada, com uma dinâmica narrativa sobreposta à propensão intimista, onde o ficcional se alimenta directamente do histórico e do factual, num cruzamento de registos inesgotável. Ou parafraseando-o, reflectir sobre o que somos e para revisitar outros lugares e outras épocas.
E se o topos, como um cenário de enquadramento ficcional, representa a tão vasta quanto encomiástica loa de homenagem presentificada na obra de tantos escritores do Norte, como António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Eugénio de Andrade, Agustina Beessa-Luís, et alliae, a específica determinação de personalidades biograficamente revisitadas, torna-se, nesse também dinamismo pluridiscursivo, cartografia de coordenadas bem definidas no percurso claudiano.
E não careceríamos de avocar mais que o atrás citado António Nobre, Guilhermina Suggia, Amadeo Souza-Cardoso, Rosa Ramalho, Francisco José de Goya e Luciente e Camilo Castelo Branco, na genial culminância de Camilo Broca... para entrever diversificados e convergentes percursos traçados e corridos nas duas últimas décadas.
Incansável, a mão que escreve, quase ausente de um corpo lesto a responder às solicitações multifacetadas deste escritor, da sua faina académica, à contínua pesquisa, aos colóquios, seminários, orações de sapiência, jornalismo, homenagens inter pares, sempre requeridas e de bom grado acolhidas, à colaboração em revistas literárias, Mário Cláudio desdobra-se ainda para seguir suas traduções mundo afora, em línguas tais que a inglesa, francesa, castelhana, italiana, servo-croata, checa, húngara… e ainda se esfuma pelos interstícios do tempo, de modo a receber, em mais que perfeito e justo reconhecimento, os plurais prémios que lhe vêm sucessivamente a ser outorgados: Grande Prémio do Romance e da Novela (APE); Prémio de Ficção (Ant. 1); Prémio Lopes de Oliveira; Prémio de Ficção do Pen Clube Português; Prémio Eça de Queirós, da CML; Grande Prémio da Crónica, da APE; Prémio Pessoa; Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora…

Mas, incansável a mão que escreve, dizíamos, não esquece a sua função mor, imensa e de jorro inesgotável.
E assim, surge-nos agora, Boa Noite, Senhor Soares, em cuidada edição da Dom Quixote.
E qual a urdidura, onde de tão bom grado nos envolvemos, nesta novel e notável novela?
Uma determinada sincronia biográfica, de uma inexistente personagem, ela própria por criador ficcionada e aqui descrita pela diacronia da vida de um aprendiz de caixeiro, na Rua dos Douradores, António da Silva Felício, em plena baixa lisboeta dos anos 20 e 30.
O Senhor Soares, modestíssimo ajudante de guarda-livros, de seu nome de baptismo Bernardo, semi-heterónimo do senhor Fernando Pessoa e autor do Livro do Desassossego, essa autobiografia sem factos, escrita à beira do tédio e do trágico, a meias mãos com Vicente Guedes, mas isso já é outra estória…
Dele escreve a matricial voz: é um semi-heterónimo porque não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.
Mário Cláudio congemina magistralmente e dá voz, num palco profundo onde a primeira, segunda e terceira dimensões se entretecem numa sucessão quase acrónica, a um jovem tímido, temeroso, inexperiente, quase indigente, que é a personagem pelo autor criada para olhar, ver, tentar compreender e narrar essa outra personagem por Fernando Pessoa desenhada, para descrever as sensações provocadas pelo anonimato da vida na baixa lisboeta, aqui, interligadas num tão estranho quanto bizarro jogo de especulações, de sugestões, cingidos ao pragmatismo simples da asfixiante rotina quotidiana dos anos 20-30, num esconso microcosmos, onde o ortónimo Fernando, durante quase três décadas, vagueou e se outrou.
Elíptica novela de onde ressumbra a empatia inúsita entre Felício e Soares, dela emergem o que não foi e uma veneração (etimologicamente) receosa do que foi o primeiro admirador de Bernardo-gente, que não obra, também ele, o que não existiu.
Nestas teias ficcionais, maestrina mão, a de Mário Cláudio, galopa como poldro indómito pela lezíria do tempo, pelas partituras verdes da síntona sinfonia, até chegar ao presente de Felício e ao derradeiro tributo que este, ancião, já avô, intenta e cumpre fazer ao esfíngico fantasma do passado já brumoso, tão carismaticamente marcante, cuja voz receava, ora ansiava, e com quem havia trocado tão poucas as palavras quão muitos os olhares.
Pessoa foi trasladado para o Mosteiro dos Jerónimos em 1985.
Felício tem um neto mais novinho. Que nome lhe dará?
Bernardo, pois claro!
E assim, o excipit de Boa Noite, Senhor Soares, esse belo louvor das inexistentes vidas, que à sombra das fulgentes luzes escrevem as páginas séculos afora perduráveis.
E assim, este livro que ora se apresenta pouco após o dia 13 de Junho, a lembrar que Fernando António Nogueira Pessoa nasceu há 120 anos na cidade de Lisboa.
A bem soada homenagem.

Boa Noite, Mário Cláudio, aliás, Ruy Barbot!