sábado, janeiro 24, 2009

Uma noite assim...

Há noites assim. O tempo arrasta-se aos baldões corrido nos uivos de um vento irado, que açoita com fragor as paredes da casa e faz das persianas consertinas de um trio triste e das trevas, miasmas dolorosos.
A chuva, essa, ora é contrabaixo grave, ora rufar de um tambor demente, incansável, enquanto o bramir medonho do vendaval rasga a escuridão num de profundis brotado de gargantas ásperas das lacrimosas vozes emergentes da terra madre.
O cedro, em frente ao studio das três janelas corridas, esquece sua íntegra compostura, perde sua tufada elegância e possesso executa um bailado demencial de contorsões, espasmos, aflições, num silvar de balas, num rasgar de fibras, traçando círculos de raio improvável, encrespando angustiado as raízes na terra cediça de tanta água, desferindo chicotadas nas vidraças duplas, que comprimidas de tensão, vibram e rangem nos caixilhos de metal impávido.
Lupino, o vento vai cedendo num cansaço moroso e distanciado. Abandona a casa sovada, o cedro exausto e meus nervos hirtos como ossadas descarnadas, brancas, de uma insónia tensa.
Pára, enfim, a chuva densa. Os caleiros escorrem córregos dos telhados inundados, esganados até às gotas finais. São 06H56. Uma fímbria de cinza escura, teimosa e mansa, alvora o bréu. Nas arcas do peito, a tosse de vidro quebrado, arranha-me até à garganta ferida. Os olhos, esses, persistem numa atalaia insane que a fadiga tarda a colher e cerrar.
O vento é um soluço contrito já esmaecido nos ruídos da cidade que desperta. De longe e a desoras chega, enfim, morfeu, pesaroso da boémia açodado. O ardor nos olhos rende as pálpebras num ceder inerme.
São 07h25. Os cães, fiéis a cronos, reclamam a saída. Penoso, arrasto o corpo quebrado da cama quente. É sábado. Sorvo o café que a máquina regorgita. Estremunhado, noctâmbulo, assumo minhas rotinas. Está frio. O meu jardim tem árvores arrancadas junto à terra donde espreitam tocos rasgados como puas. Os tapumes de uma obra voaram estrada afora. O meu petit bois tem baixas por todo o lado. Uma desolação, ramaria caída, pinhas a juncar o solo, pinheiros e carvalhiços cerceados rentes. Os mais novos e os mais velhos. Os mais frágeis. Uns de ainda curta, outros de já podre raíz. Da encosta, a jusante do hotel, um rasto de árvores caídas sobre os passeios. Um toldo de publicidade, teimoso, enrolado, faz clap, clap, num açoite triste ecoado nas ruas desertas. É sábado. Tenho frio, os olhos choram-me, os cabelos desgrenhados dançam no ar molhado, os cães despacham-se para o refúgio da casa quente. Sigo-os, eriçado. Hei-de dormir, no dia hipócrita, serenado pela luz...