olhar quebrado
Penso que saíste. E voltarás, como sempre, às 18H00. Depois, quando o tempo passa para além desse tempo, asfixio na minha solidão. Há ar a mais. O teu. E esse excesso é-me insuportável. O excesso de ti. Ausente. Cumpro as rotinas e ainda ponho na mesa dois pratos, dois talheres, dois copos... pão para dois. E quando me sento, o vazio avoluma-se de ninguém. Mesmo o som ténue de uma só fala é uma colisão desconsertada de ruído. Como por hábito, sem saber o quê, nem sabor a quê. Levanto o meu prato e deixo o teu que está sempre limpo. Agora saíamos. Peno os passos sem os teus passos e desisto de sair. Não consigo ouvir música. Tão pouco ler um livro. Ouço todo o silêncio e permaneço sentado até o corpo ser sugado pelo sofá, a meio da noite muito escura, onde meus olhos que não tenho forças para fechar, brilham com a febre da dor devassando as trevas, alumiando-as com a persistência de uma vela num velório pobre. O dia lava-me a testa quente e os olhos secos. O corpo dormente colado à cadeira não é o meu corpo. Deixei de o sentir. Está pálido e uma cómoda fixa-o de frente. Creio ter deixado a vida. Ainda não sei ao certo, mas deve ser assim.
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