OMISSÃO FONÉTICA ou as anáforas de Dionísio
Quando o desejo de falar for despertado como as carnes avinhadas fazem à gula, engole as palavras e desce-as ao fundo poço do silêncio. Semicerra os olhos como a fresta da atalaia e dá aos ouvidos só os sons em deredor. E quando ela falar, mira como o ar foge das palavras e as abelhas nelas poisam. Lê-lhe na cor do olhar as palhetas aturdidas. E na fremência das narinas pressente os borralhos recadentes. Há no arco da sobrancelha pêlos negros, quentes, quase viris. E na orelha miúda de marmórea carnação furada, a férrea recusa de ouvir. Os dedos dos pés, morenos e húmidos não foram feitos para correr. Só para sorver, como morangos. Também as mãos, inquietas, ansiosas, revelam nas nervuras linfas cálidas. A anca, no mover solto de amazona, prova que nenhum dorso longo de poldro lazão lhe tolherá ímpetos. No sobrelábio, fita atento a pérola minúscula dada à derme e percebe a gota do ardor. Por fim, lê-lhe os lábios à entrada da boca. A nervosa tumidez entreaberta por onde espreita a língua longa, curva, rubra, quente como um dióspiro ao sol queimando. Não são distensos, num espasmo terso e breve, antes retraídos em sulcos de um escuro encarnado, como uma brasa sombreada pela cinza leve e estrénua. Percebe ainda, no rêgo das comissuras bem cavado, a fluência venérea que a polpa do teu indicador, sussurrante desperta, a colher tua língua, só à fala renegada. E percebe, enfim, o discurso, que em silêncio tão longo quanto a noite de Novembro, te foi dado proferir. Alonga-te até depois da meia-noite no exórdio; perora pela alvorada fora e só quando tomado da enxuta e exausta rouquidão te dês à confirmação de que as palavras engolidas são o tesouro da retórica, ouses selar teu segredo com o lacre sibilado, enfim gemido, de tua asedada boca a salvar o dia e a abençoar a dádiva desta prédica assim pregada, de tal púlpito.
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