2ª resposta ao desafio - da Ana Pontes
E quem levará para a outra margem o Amor em seus dentes apertado?
A tarde traduz a noção de eternidade, a tarde esvai-se de mansinho no sangue restante entre as margens do tempo. A tarde estampada no meu vestido contra a cal da parede quando cai a pique o sol e a salinidade escorre em húmidos tapetes. Ao lado o musgo abocanha a pedra e a foto é um jorro de tinta em tons amarelo-verde de pinhais abençoados. O sol vagueia-me nas mãos, já pouco posso fazer pelo meu corpo que ficou estampado na tarde, numa foto irremediavelmente antiga. O que é uma tarde, na situação limite de existir do lado de lá de todas as tardes? O que é um minuto, na situação-limite de viver uma tarde num minuto, ou num minuto da tarde toda a existência de uma vida?Olho para dentro da tarde e não vejo o teu braço no lugar certo da minha cinta, a resvalar para a orla do meu seio, em eminência de posse, não te vejo a cavar dentro dos meus olhos a razão de ser do tempo, eu estar ali e tu também na foto que tiramos ao sol posto. Entendo a distância como uma foto por tirar, algo assim como um lugar em aberto, talvez uma ferida na lente, talvez o corpo tenha chegado depois do clic e a máquina já não valesse a pena, o rolo já cheio de inúteis fotos sem paisagem. O amor náufrago dentro de uma foto, já ninguém quer guardar e catalogar o amor entre corpos, solta-se o amor para não o aprisionar numa moldura, já ninguém se perde por amor num retrato, num fotograma, num filme, numa paisagem. Já ninguém se perde com o amor na extensa geografia de uma individualidade inviolável embalada no vácuo. E eu que estou presa na tarde e no amor, ainda quebro os contornos a sépia do destino, grito dentro da foto onde não estiveste, às vezes cerro os dentes e avanço para o lugar da tarde, corto a direito e despenho-me antes da outra margem te alcançar, como uma espada atenta. Alguns dias somos o mesmo lugar e o amor é a outra margem. A distância a rasgar-se nas nossas mãos, subitamente barcos, o teu rosto a ganhar nitidez no espelho da água, tens a memória no fundo do rio e o amor à tona da vontade, tudo vem já impresso com as mãos a rasar a pele.Vens sem mistério nem qualquer mestria no olhar, só a rendição infantil ao avental da infância, vens para mim coberto de silêncio da cabeça aos pés, preso no núcleo da minha trança. O meu corpo urge-te e adentras-te pela água. Levo-te comigo para dentro do retrato, amamo-nos ao sol, numa tarde em caracol a caminho do céu. Uma pirografia feita pelo sol, e dois corpos surgem na mesma margem. Subitamente a tarde fala de Amor.
Ana Pontes
Ana Pontes
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