terça-feira, novembro 27, 2007

releitura por tua indução, isabel...

"Que alguém ousasse descer das ideias puras aos tortuosos caminhos da humana conduta, e logo o medo, mais ainda que o orgulho, se tornava o primeiro motor das execrações. O atrevimento do filósofo que preconiza a livre acção dos sentidos e trata, sem desprezo, dos prazeres carnais, enraivecia a multidão, sujeita, neste campo, a muitas superstições e ainda mais à hipocrisia. Pouco importava que quem a tanto se arriscava fosse ou não mais austero, e por vezes mais casto, que os seus encarniçados detractores: conviera-se que fogo nenhum, em nenhum suplício havia no mundo capaz de expiar tão atroz ousadia, e isso, precisamente, por a audácia do espírito parecer agravar a do simples corpo. A indiferença do sábio, para quem qualquer país é pátria, e qualquer culto válido, à sua maneira, exasperava, igualmente, essa multidão de prisioneiros; se aquele filósofo renegado, que, aliás, nunca renegara nenhuma das suas verdadeiras crenças, era para eles um bode expiatório, é porque cada qual, secretamente, ou mesmo, às vezes, sem querer, desejara um dia sair daquele círculo onde, fechado, iria morrer. O rebelde que se erguia contra o seu príncipe provocava em todos os seguidores da ordem algo de semelhante a essa invejosa raiva; o seu Não exasperava o Sim incessante deles. Mas os piores de entre esses monstros que tão singularmente pensavam eram os que porventura praticavam alguma virtude: eram muito mais de temer, pois que não era possível votá-los a um desprezo total."
Marguerite Yourcenar, A obra ao negro, Dom Quixote, 1984