quarta-feira, fevereiro 18, 2009

textos idos


Nutro hoje especial e peculiar carinho e simpatia pela minha pessoa.
E estou-me nas “tintas” para a legitimidade de tal sentimento, neste nimbo de disciplina auto-suficiente que almejo, inclemente, impor-me.
A opinião de terceiros sobre o assunto é-me alheia e indiferente, o que me faz voar em mach 3.
É 4ª feira. Deitei-me às 18h15. São 20h30 e, ora, escrevo, para ficar no papel este sentir.

1 – Determinei no início desta semana não gastar 1 euro. Nem num jornal. Mesmo as voltas de carro têm sido limitadas para evitar ir abastecer.
Creio que até sábado terei sucesso. Aí, deliberadamente, saio com os copaîns para um passeio-clássico, com almoço incluído.
E tenho que comprar o expresso e o público, petite habitude prevaricante que não hesito em preservar.
Qual o objectivo(s)?
Resistir ao consumo exagerado do nada, vazio vil onde se espraia a gula da fácil tentação;
Ordenar as minhas contas-correntes, que não aparentam nem detêm a melhor saúde…

2 – Estacionei o carro às 16h50 no parkpress da psp, para dar um curto passeio a pé pelas ruas-casbah-do-centro-consumista.
Iniciei a deambulação a ver montras, deleitado, na certeza e comprazimento de que nada haveria capaz de me tentar e alterar esta regra nova.
Olhava a gant, no início da rua direita, quando me tocaram no ombro esquerdo.
Era uma pessoa amiga que já não via há mais de meio ano.
Olá-olá-vamos-tomar-um-irrecusável-chá… Entrámos num velho centro comercial bafiento e semi-deserto. Perguntou-me muito soft que moda nova era não atender o telemóvel. Respondi-lhe, muito light, que tinha outro número e que o antigo chegava a estar semanas inteiras kaput. Retorquiu que ficava a impressão digital da chamada não atendida. Expliquei, cândido e credível, que o aparelho só me deixava o nº em msg. Que não identificava os 10 ou 15 números que lá apareciam, cada vez que ligava o “coiso”. E que não tinha o desplante (forma chic do descaro) de telefonar para todos a saber quem eram-olá-tudo-bem-tenho-uma-chamada-não-atendida-desse-nº-com-data-de-há-5-dias…
Anuiu sem bulha. Perguntou-me se saíamos hoje. Respondi que tinha um compromisso, que me era de todo impossível. Sibilou, suave, que dantes não havia compromissos que nos inviabilizassem…
Fraco, abri-lhe o coração (ah! velho músculo!) e confessei que estava a gostar de alguém e que me era fisicamente não aceitável transgredir uma fidelidade que auto-erigira em bandeira de uma qualquer pseudo-dignidade há muito perdida.
Sorriu, compreensiva, parecendo aceitar como boa a complicada asserção. Acabámos o chá. Levantámo-nos. À despedida, distraída (decerto), deixou no ar: “Estou sozinha, em casa, à espera do teu telefonema para sairmos…” e partiu, coleante, nas sombras que da noite descaíam.
E eu parti, também. Para casa. Deitei-me às escuras. Chamaram-me para jantar. Em pijama, comi um caldo e uma malga de morangos. Deitei-me de novo. Escrevo este testemunho.
Não sei se to enviarei. A negativa não será por pudor, nem a positiva por afirmação. Superei esses estados. Se to mandar (e terei que o passar a computer) no fundo, será somente (?) para não te omitir nada (parece-te bem?), mais do que para saber quão-excepcional-pessoa-eu-sou-que-assim-me-alardeio-em-sofríveis-qualidades…
Creio que vim para a cama para erguer um reduto de protecção à minha eventual fraqueza. O que me retira a tal-excepcionalidade-faz-de-contas.
Ouvi Mozart, às escuras. Aqueci-me no calor da roupa. Pensei em coisas várias. Esquematizei mentalmente o próximo artigo de jornal. Revi em espírito alguns poemas de Ricardo Reis.
Passa das 21h00. Já ninguém espera por mim, nenhures.
(…)
Estou satisfeito comigo e com a disciplina e rigor que exercito com êxito e epicurista renúncia. Superar as tentações, eleva-me. Das mais comezinhas às de mor vulto. Aquilo que para uns é trivial exercício de normalidade, para mim, carece de esforço e de tenacidade.
Sou um fraco, mas supero-me. Ou pelo menos, tento. Estou aparentemente muito sereno. Faço sobre isto prognóstico reservado…mas redentor…

Recordo o que escrevi 3ª feira à noite:

(…) tenho a boca de silêncios cheia
de renúncias prenhe o corpo
(…)

e, humildemente, recordo o meu compère de hoje, o tal Reis, que há muito, sapiente, escreveu:

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio
(…)


Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
(…)

Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada
É livre;
(…)

E caldeio-me, enleado, e ao Reis, e concluímos, em coro:

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos
(…)


(19 Janº 2006)