IIª Parte
(...)
Mas, a Lapa, se no seu longo e devoto historial assenta esteios que lhe sustentam fama e tradição, deverá também dela alguma ao seu mais famoso aluno, Aquilino Gomes Ribeiro, nado a 13 de Setº de 1885, na freguesia do Carregal, concelho de Sernancelhe.
E aqui chegados, exaustivo e fora do âmbito desta breve parlenda seria relevar a presença da Lapa na obra Aquiliniana. Incontroverso é a Lapa e o seu Colégio terem deixado no Mestre uma profunda marca, ecoante desde as primícias autorais, até ao derradeiro fecho, em Um Escritor Confessa-se.
A remate, ainda assim, não me impeço de ler-vos de Terras do Demo (1919), extractos soltos deste grandioso fresco com as cores do mundo, esta sinfonia com os sons da vida, extraídos do Capítulo Vº:
E aqui chegados, exaustivo e fora do âmbito desta breve parlenda seria relevar a presença da Lapa na obra Aquiliniana. Incontroverso é a Lapa e o seu Colégio terem deixado no Mestre uma profunda marca, ecoante desde as primícias autorais, até ao derradeiro fecho, em Um Escritor Confessa-se.
A remate, ainda assim, não me impeço de ler-vos de Terras do Demo (1919), extractos soltos deste grandioso fresco com as cores do mundo, esta sinfonia com os sons da vida, extraídos do Capítulo Vº:
Quando chegaram ao Miradouro, guarita que cobre da chuva um santinho sem nome e o viandante que passa, atalaia, com mais outros três, aos caminhos perdidos pelos outeiros à cata dos povoados, o sol estava na agonia. A Lapa aparecia em baixo, a um arranco de cavalo, com o santuário de panos caiados a fraldejar, a casaria, pobre e alegre, de rojo para a Casa dos Jesuítas, grande e soturna, e o peso de gente que, lá em riba, subia e descia em mar-a-monta, num arruído de trabuzana.
Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapau leva que leva. Lá adiante, no morrer da baixa, o melhor de uma aldeia, harmónio fungando, cores a berrar, avançava num animado passo de dança. Sozinhos, chegado um ao outro, lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos a vergonha de se mostrar. Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo, outras mulheres tinham as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o chaile, desunhavam-se todas tep, tep. E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa, que o mês de Agosto c’os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.
(…)
Chegadas, porém, ao largo do pelourinho, que é a boqueira do povo, de pedintes, entre a gentiaga em vaganau, só se toscavam os pirangas que trocaram o trabalho pela vida marota, e os zoratos que fazem graçolas de mono, e arremedam bandurras no varapau a que se encostam.
Já mal se rompia. Lá estavam as vareiras, com as chapeletas sobre a caraminhola, de mangas arregaçadas diante das barricas, sobre que abririam as pernas a verter águas, quando ao peixe fosse mister de molho. Atrás delas, os burros dos festeiros cismavam com o relvão saboroso de Maio, que já lá ia. Os adjuntos, mormente à porta da Miquelina, que não precisava pôr o ramo, de caneca alçada beberricavam Para a outra banda, os romeiros de longes terras empilhavam-se nas escaleiras do pelourinho e suas abas, nas cercanias da velha cadeia, tão velha que já nem se sabia quando guardara homem. Entre eles nem ficava chão para pôr um pé. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lódão no ar, tau-tau, viva a rusga! Logo na cola, um harmónio gemia o fado, e os dançarinos, de volta, em rijos saracoteios, vá de frente, vá de lado, batiam a terra a mata cavalo.
-- Auguinha fresca !
-- Merca doces da Teixeira!
-- Paulitos, fortes, e almirantes!
Era um dia de juízo. Esvaziavam-se para ali as terras de muitos concelhos; ainda havia gente para a guerra em Portugal!
(…)
Diante da casa dos Jesuítas, tornada em Colégio, as tendeiras, nas barracas de lona, não tinham mãos a medir. Vendia-se ali de tudo, berimbaus, palhaços que alçam as pernas por riba dos ombros, guisos ásperos para adormecer meninos, os bons canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e linhas para quem se quiser coser.
(…)
Mais arriba, a entestar com o santuário, alinhavam as chafariqueiras; tomava-se ali toda a casta de bebidas, desde o café à limonada. Pelo meio, rondavam os moinas, que as melhores frangainhas serviam naquelas barracas. O palminho do rosto, a poeira, o calor da bursunda, ou o frio da noite ajudavam à veniaga e era chícara cheia, chícara vazia.. A Lapa vivia daquilo e dos padeiros. A água do sítio – ali tem o Vouga a mãe – era rija e fintava-se um pão que nem a senhora República em Lisboa o comia melhor. A Lapa abastecia tavernas e casas ricas pelas redondezas. Em duas alas, sobre tarimbas, ao entrar para a igreja, ofereciam as padeiras o pão. E até Nossa Senhora no penedinho recebia o bafo ainda morno da rescendente fornada. Vendedeiras de boa disposição a fazer bem, padeirinhas de pele rosada e cabelo loiro chamavam os faiantes que gostam de se desougar ou arreitar a fêmea por feiras e romarias.
Contra o Colégio, armavam as doceiras; bolos, falgaros, rebuçados em tabuleiros de que choviam rendas e badalhocas; e debaixo do arco que do Colégio dá passadiço para a Capela, em lençóis à dependura das paredes, havia ricos ramalhetes de tafetá, amores perfeitos em chita, raminhos com pena de canário, tudo mais catita que um jardim no maio.
Na Lapa, caramba, havia de tudo, o bom melão, a boa fruta, cachos do Távora, dos temporões, enguia, vitela, uma moça frescalhota para gozar. E, mesmo pelas sombras, estes negociantes da trama, sem poiso fixo, os criadores de furão, os jogadores da vermelhinha, e até os ciganos de má morte. Sem falar nos ourives e relojoeiros que, de lembrança, vinham pôs à ilharga esquerda do templo, quando se entra, sempre com variado e rico sortido, para arriar noivas e sorver a pecúnia dos Brasis. Podia gastar uma fortuna quem fosse rabaceiro ou amigo de doidejar. A Senhora de Agosto era uma só entre o Douro e o Dão.
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Pelo braço de estrada fora rompiam ranchos em algazarra, bestas rinchonas caracolando e maltas de varapau leva que leva. Lá adiante, no morrer da baixa, o melhor de uma aldeia, harmónio fungando, cores a berrar, avançava num animado passo de dança. Sozinhos, chegado um ao outro, lá passavam dois casadinhos de fresco; bem se lhes via nos olhos muito mexidos a vergonha de se mostrar. Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo, outras mulheres tinham as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o chaile, desunhavam-se todas tep, tep. E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa, que o mês de Agosto c’os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.
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Chegadas, porém, ao largo do pelourinho, que é a boqueira do povo, de pedintes, entre a gentiaga em vaganau, só se toscavam os pirangas que trocaram o trabalho pela vida marota, e os zoratos que fazem graçolas de mono, e arremedam bandurras no varapau a que se encostam.
Já mal se rompia. Lá estavam as vareiras, com as chapeletas sobre a caraminhola, de mangas arregaçadas diante das barricas, sobre que abririam as pernas a verter águas, quando ao peixe fosse mister de molho. Atrás delas, os burros dos festeiros cismavam com o relvão saboroso de Maio, que já lá ia. Os adjuntos, mormente à porta da Miquelina, que não precisava pôr o ramo, de caneca alçada beberricavam Para a outra banda, os romeiros de longes terras empilhavam-se nas escaleiras do pelourinho e suas abas, nas cercanias da velha cadeia, tão velha que já nem se sabia quando guardara homem. Entre eles nem ficava chão para pôr um pé. E por entre estes e as vareiras, as maltas e ranchos cavalavam. Lá rompia Granjal de lódão no ar, tau-tau, viva a rusga! Logo na cola, um harmónio gemia o fado, e os dançarinos, de volta, em rijos saracoteios, vá de frente, vá de lado, batiam a terra a mata cavalo.
-- Auguinha fresca !
-- Merca doces da Teixeira!
-- Paulitos, fortes, e almirantes!
Era um dia de juízo. Esvaziavam-se para ali as terras de muitos concelhos; ainda havia gente para a guerra em Portugal!
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Diante da casa dos Jesuítas, tornada em Colégio, as tendeiras, nas barracas de lona, não tinham mãos a medir. Vendia-se ali de tudo, berimbaus, palhaços que alçam as pernas por riba dos ombros, guisos ásperos para adormecer meninos, os bons canivetes de marca de anzol, faixas de oito voltas e linhas para quem se quiser coser.
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Mais arriba, a entestar com o santuário, alinhavam as chafariqueiras; tomava-se ali toda a casta de bebidas, desde o café à limonada. Pelo meio, rondavam os moinas, que as melhores frangainhas serviam naquelas barracas. O palminho do rosto, a poeira, o calor da bursunda, ou o frio da noite ajudavam à veniaga e era chícara cheia, chícara vazia.. A Lapa vivia daquilo e dos padeiros. A água do sítio – ali tem o Vouga a mãe – era rija e fintava-se um pão que nem a senhora República em Lisboa o comia melhor. A Lapa abastecia tavernas e casas ricas pelas redondezas. Em duas alas, sobre tarimbas, ao entrar para a igreja, ofereciam as padeiras o pão. E até Nossa Senhora no penedinho recebia o bafo ainda morno da rescendente fornada. Vendedeiras de boa disposição a fazer bem, padeirinhas de pele rosada e cabelo loiro chamavam os faiantes que gostam de se desougar ou arreitar a fêmea por feiras e romarias.
Contra o Colégio, armavam as doceiras; bolos, falgaros, rebuçados em tabuleiros de que choviam rendas e badalhocas; e debaixo do arco que do Colégio dá passadiço para a Capela, em lençóis à dependura das paredes, havia ricos ramalhetes de tafetá, amores perfeitos em chita, raminhos com pena de canário, tudo mais catita que um jardim no maio.
Na Lapa, caramba, havia de tudo, o bom melão, a boa fruta, cachos do Távora, dos temporões, enguia, vitela, uma moça frescalhota para gozar. E, mesmo pelas sombras, estes negociantes da trama, sem poiso fixo, os criadores de furão, os jogadores da vermelhinha, e até os ciganos de má morte. Sem falar nos ourives e relojoeiros que, de lembrança, vinham pôs à ilharga esquerda do templo, quando se entra, sempre com variado e rico sortido, para arriar noivas e sorver a pecúnia dos Brasis. Podia gastar uma fortuna quem fosse rabaceiro ou amigo de doidejar. A Senhora de Agosto era uma só entre o Douro e o Dão.
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