quinta-feira, abril 02, 2009

'a releitura do muito longe'

"Le refus du très proche implique la relecture du très loin."

Gleize, JM, Poésie et Figuration, Aux Editions du Seuil, 83, (intr. p.12)


Hei-de dizer-to em texto corrido, com um esplêndido sol das doze e uma vista de mar revolto -- tem que estar revolto para exalar seus odores profundos -- que naquela tarde, sentados no paredão húmido, com um só movimento dos dois corpos, eu à tua direita envolvendo-te com o braço esquerdo, sem palavras para dizer, ambos de olhos esmaecidos nas emanações do horizonte, vivi um momento que julgo ter sido de felicidade, raramente -- ou talvez nunca -- alcançado em tão majestosa singeleza. Receei quebrá-lo com uma frase mal dita, imperfeita para o momento. Temi que mesmo encontrando-a, apenas a meus ouvidos soasse com a exactidão do que tinha a dizer. Também não me quedei alongado a reflectir sobre isso. Não cabia naquele certo tempo nenhuma incerteza. Ademais, a minha comunhão contigo, e a envolvência, poderia não ser semelhante à tua comunhão... Mas gostaria de to dizer. Sabes, gastamos meia vida a dizer o indevido e outra meia a calar o devido. O que dá um balanço apenas no parecer equilibrado, nesta conta-razão, contabilidade da partilha. Ainda que hoje risses e já nem lembrasses esse dia, e me olhasses alheada e sorridente, como sempre fizeste quando não entendias as palavras, e até os actos. Achavas-me excêntrico, "bizarro", dizias, rolando muito os erres... Que fundo, lamento tudo ter passado e não saberes que fora feliz um instante, naquela tarde no paredão sentados, silenciados, a ouvir o mar e o bater exaltado dos corações. Merecias sabê-lo! Mas não soube nem sei dizer-to. Há penas assim, furtadas ao voo da felicidade...