quinta-feira, fevereiro 19, 2009

A Testemunha Impossível


(in "Matérias Sensíveis", Molder, Maria Filomena, Relógio D’Água, Dezembro de 1999)

“O facto de se representar não anula, no que respeita ao representado, a inerência de irrepresentabilidade (do mesmo modo que o facto de termos esquecido o inesquecível não altera a sua natureza de inesquecível, apenas põe à vista que não estamos já em condições de reconhecer aquilo que merecia ser lembrado por nós), mas arrasta consigo uma incapacidade em aceitar que haja irrepresentável, uma vez que o que está à nossa frente é visivelmente representável, fotografável naturalmente. Uma irresistível inferência obriga a dizer: se isto é visível é representável, se é representável não pode ser irrepresentável. O que é uma forma radical de cegueira ao rebatimento recíproco entre representável e irrepresentável, da mesma família da cegueira que, por obediência ao princípio da não-contradição, se recusa a admitir que um quarto vazio esteja ao mesmo tempo cheio de luz.
São múltiplos os esforços autojustificativos desta cegueira, no quadro de uma qualquer teoria social, antropológica, de uma doutrina moral ou de uma qualquer interpretação estética. O quadro mais poderoso é ainda o da doutrina moral do testemunho, que se tematiza no acto de testemunhar. Nos casos-limite, isto é, nos casos em que o irrepresentável se despenhou sobre o representado no próprio momento da representação, apropriado por uma operação de dar a ver, a saber, uma operação fotográfica, é aí que nome e o acto de testemunhar conhecem o cativeiro.
Desse cativeiro nasce o paradoxo da testemunha (da guerra, da dor insuportável, do campo de refugiados): o irrepresentável só pode ser testemunhado por aqueles que já não, nunca mais poderão testemunhar, que agora já não podem testemunhar, nunca mais. Deles dizemos que são testemunhos vivos, representados nas imagens como enviados certificadores de um estado de coisas, mas eles não se podem destacar de modo nenhum disso de que são os vivos, reais, testemunhos, pois foram atirados para um abismo, onde as categorias, os modos de dizer, se esvaziaram, e onde ser mãe, ser pai, ser filho, ser irmã, respirar, respirar, comer, desejar se tornaram intangíveis, isto é, não se pode em absoluto continuar a viver, embora se continue a viver.
Nesse ponto, definitivamente, a fotografia obscurece o visível por ser tão visível, só visível, e cega aquele que olha para ela. Tendo o visível sido representado (não sabemos mais aquilo que se mostra: quais as formas imaginativas? nem quem se exprime: o fotógrafo?), o irrepresentável coincide com o nosso olhar cego e é submergido, devorado e confundido com a retórica própria das condições de representação. A única resposta seria fechar os olhos, baixar os olhos, tapar os ouvidos, deixar escapar mil gritos, cair. Mas também enxugar o suor da fronte, deitar-se ao lado, abrir a porta.”


Nota:
A cegueira é isotópica em MFM?
Ela própria sendo muito míope e usando óculos muito graduados...
De viva voz lho ouvi durante uma sessão de "Ornamento e Estilo":
Deus tira a visão àqueles que quer perder