domingo, setembro 30, 2007

do meu tinteiro

há sangue a escorrer dos ditos
espuma de sargaços
algas onde a pele se enforca
...
e falas
dizendo dores d' ora e de outrora
nojos futuros
...
a lúcida loucura
incha de ira a rocha
bramando augúrio ao vento
...

Pedra de Canto - Vitorino Nemésio


Ainda terás alento e pedra de canto,
Mito de Pégaso, patada de sangue da mentira,
Para cantar em sílabas ásperas o canto,
De rima em -anto, o pranto,
O amor, o apego, o sossego, a rima interna
Das almas calmas, isto e aquilo, o canto
Do pranto em pedra aparelhada a corpo e escopro,
O estupro de outrora, a triste vida dela, o canto,
Buraco onde te metes, duplamente: com falo,
Falas, fá-la chorar e ganir, com falo o canto
No buraco de grilo onde anoiteces,
No buraco de falso eremita onde conheces
Teu nada, o dela, o buraco dela, o canto
De pedra, sim, canteiro por cantares e aparelhares
Com ela em rua e cama o falo fá-la cheia,
Canteiro porque o falo a julga flores, o canto
Áspero do canteiro de pedra e sémen que tu és
(No buraco do falo falaste),
Tu, falazão de amor, que a amas e conheces.
Amas a quem? Conheces quem? Pobre Hipocrene,
Apolo de pataco, Camões binocular, poeta de merda,
Embora isso em sangue dessa pobre alma em ferida:
A dela, a tua, cadela a tua pura e fiel no canto
De lama e amor como não há no charco em torno,
Maravilhoso canto só de soprares na ponta a um corno
E logo a sílaba e o inferno te obedecem
E as dores íntimas dela nas tuas falas se conhecem,
Sua íntima vergonha inconfessada desponta,
Passiflora penada, pequenina vulva triste
Em teu sémen sarada e já livre de afronta:
O canto em pedra e voz, psicóide e bem vibrado,
Límpido como vidro a altas horas lavado,
Como o galo de bronze pela dor acordado,
No amor e na morte alevantado,
Da trampa mentirosa resgatado,
Como Dante o lavrou em pedra de Florença
E deus to deu de amor põe ela no atoleiro?
Flor menina de orvalho em amor verdadeiro?

Ainda terás amor e pedra de canto,
Fé nela e sua dor de arrependida e enganada,
Ou, enfim, amor a fogo dado e perdão puro...
Eu quero lá saber! Amor de Deus no canto
De misericórdia e paz, mesmo para os violentos
Da violência violeta, a breve miosótis
Ao canto unida e em tuas lágrimas orvalhada?
Cala-te e humilha-te como ela,
Ou é maior do que tu no canto
E a esta hora só bebe talvez água salgada,
Oh poeta de água doce!

Mas, antes de calar espada e voz, responde:
Ainda terás alento e pedra de canto
Para cantar estas coisas,
Encantar outra vez a donzela roubada ou niña morta,
Enfim, o teu amor?
Dize, lá, sem-vergonha,
Homem singelo:
Pois se nisto me mentes nunca mais a verás.

(Quem fala?)

Sobre o verde do trevo

De alguns corpos se diz que são transbordantes, quando se deitam é raro não deixarem sinais: pequenas manchas de sol recente ou delicadas sementes de alegria. Da substância vertida sobre o verde do trevo se diz também que é eloquente (eu diria irradiante), não sei se pelo cheiro ao oiro da poalha humedecida, se pelo brilho de seda acariciada. o que sei é que fascina as formigas e põe em cólera as éguas que nenhum vento emprenhou.

Poesia, Eugénio de Andrade, ed. FEA, 2000.


visita guiada

Somos os lugares que ocupamos e os objectos que usamos e de que nos rodeamos? Em certa medida, sem ângulos redutores.
Uma visita fotográfica ao meu meio e modo.

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Terceto 242. de textos do capricórnio.
Pulso esquerdo com relógio Bulova Excellency de 1938 sobre livro quase branco.

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Os manus-escritos. A busca da palavra certa. O texto inacabado. Ou nunca acabado...
Palavras, factura e marcador.
Texto.
Texto.
E texto.





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A diacronia da vida resume-se a estas duas sincronias. Meia vida a subir e meia vida a descer. Mito de Sísifo?



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Puxador dourado de uma cómoda do quarto de dormir. Frio. Dou-lhe mais vezes a mão do que a qualquer outra mão. Sem afago. Para abrir o gavetão. Quantas mãos antes da minha mão? Quantas mãos depois da minha mão? Impávida coisa inalterada sobrevivente a todos os tempos.
Antes do computador, escrevia nesta Royal de Luxe. O meu pai também. Antes dele o meu avô. Tem os dígitos de três gerações impressos nas férreas teclas luminosas...
Reposteiro do escritório. Quente, filtra a luz em castanho. Filtra os sons de fora em silêncio e dá um ambiente acolhedor e propício à interiorização. Não deviam ser assim, todos os cortinados?



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Canetas, esferógraficas, lápis e baton para o cieiro. Omnipresentes nas minhas mesas de trabalho, em copos e latas de todos os feitios.
Os relógios de pulso. Devem ser automáticos ou de corda manual. De preferência em ouro, branco ou rosa. O que mais uso é um Omega de 1928, de mecanismo comprado na Suiça e montado em Portugal, em caixa de artífice lusitano. Tenho 33. Submissão a Kronos?

As bolas e os números da sorte, ou as bolas de um bilhar quedadas, balizadas, reprimidas na sua solidão?

Cerâmica figurativa. Mulheres, rosto e corpo. Vidro e cerâmica, um Jaguar XKE e um XK120.
Miniaturas de carros. Brinquedos de outrora e de sempre. Marcas e modelos que já tive ou gostava de ter. Por todo o lado, convivem com os livros.






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Livros, livros & livros... a minha leira de livros.






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Estátua que adquiri no estrangeiro há duas dezenas de anos. A vitalidade do equídeo e o abandono da valquíria pujante... Neorealista?
Bela imagem de Ângelo de Sousa (1964), ilustrando a capa de Poesia, de Eugénio de Andrade (Ed. da Fundº Eugº de Andrade, 2000)
Equídeo em estanho , pela morfologia, decerto, PSI. Estranhamente comprado em Alter do Chão, às portas da Coudelaria de Alter Real, que tantos e tão magníficos cavalos PSL tem gerado...



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Óleo sobre papel. Meta morfos.
Desenho a lápis. Meu. Riscos de um sexo pelado.
Numa parede, de uma escadaria, está este autoretrato de uma pintora que nunca vi. Todos os dias, vezes sem conta, nos cruzamos. Eu olho-a. Ela baixa os olhos. As cores são fortes e o traça marcante. Por isso o comprei. É uma mulher comprada numa exposição.
Este óleo é meu. Eu não sei pintar, mas gosto dos efeitos das tintas combinadas na tela. Agrada-me a sua desarrumação e pluralidade cromática. Não tem valor venal. Para mim, só visual.
Óleo meu. Em amarelo inca (existe?). É uma tábua estreita de 15 cm por 40 de alto. São pictogramas.
Pelos púbicos de um dorso, da autoria de Maria João Franco. Enorme tela que o marchand d'art não me queria vender por ter sido oferecida pela artista...







sábado, setembro 29, 2007

idiopatias

Traseira em cauda de pato.
Protecção para o frio e chuva.
Os dois lugares convenientes.
O fino traço da escola estilista italiana, aqui, na voluptuosidade arredondada das linhas.
Nada lhe falta: desde a mala para levar a merenda, até à sacola para os livros, na capa do pneu suplente...
Verdadeiro ícone do pós-guerra, a Lambreta significa antes de mais a evasão ao alcance das massas, significa também a passagem do proletário, da bicicleta à motorizada, e uma década depois, ao automóvel, com o Fiat 500. Estamos no advento da velocidade, da mobilidade. A Vespa, derivação do conceito, simboliza também uma nova rebeldia e autonomia que se gera na juventude. Meio de transporte urbano por excelência, pulula pelas ruas de Roma, Nápoles, Milão, Florença... A aqui presente, azul cueca de origem, modelo raro do início de 60, com 150 cm2, 4 velocidades no punho esquerdo e dois lugares, era o meio de locomoção ideal para levar a namorada. Deixo-vos com o Poema da Auto Estrada, de Rómulo de Carvalho, perdão, António Gedeão, um pastiche do vilancete de Camões:
Se o lerem com atenção... mais coisas descobrirão...
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.
Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingindo,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.
Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.
Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.
Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.
in Máquina de Fogo.
























domingo, setembro 23, 2007

O brevitas vai estar ausente até próximo dia 30.
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Senhorita circunspecta com barretina preta

dia de sol

assim, no verdejante bosque
sobre a sépia terra

seja o corpo aceite




sábado, setembro 22, 2007

Se

se às vezes me enfeitasses de algas e feridas marinhas
se ao menos às vezes me percorresses na vasta maresia
se tanto me fosses fiel na fina fímbria do desejo
ah, meu amor, tudo de mim terias se mais ter de mim
fosse teu desejo

sou apenas uma presença na irisada lâmina da noite
cravaste em mim o teu busto e a tua fronte de cetim
e eu busco a renovação da tua pele que tantas vezes
se desfaz sem mim...

às vezes gostava de fechar a porta à noite,
permanecer agachada no fundo sereno de mim
não existo muito quando me ponho assim

apenas penso, e protesto a fuga que declino
regresso-te com o desejo na boca e o luar solto
sou frio e quero o teu calor mas sou também corpo
e há uma entrega que sempre fica guardada
num mistério de silêncio arguto e purpurino

se às vezes me atirasses para um pomar maduro
e a minha boca sumarenta te fizesse meu fruto
se às vezes pudéssemos saciar a sede sem futuro

mas não tenho o direito de acorrentar-te ao lugar distante
não posso permanecer no teu futuro tanto tempo
se o teu futuro é um lago onde não pertenço

também eu quero que vivas sem me viver por dentro
que ames a vida mais do que me possas ter amado
no nosso mais íntimo momento

nada desfolhará o que te guardo em flor no meu peito
abro-te todos os dias no livro da manhã e leio-te o olhar
pouco te vejo, mas pressinto nas flores o orvalho outonal
ou a rega inesperada de uma chuva de setembro

meu amor, nunca perceberás a delicadeza do meu desejo
toco a tua alma solenemente com o pudor dos anjos
aceito no meu o teu corpo com a tentação dos demónios

e entre o céu e as entranhas vulcânicas da terra
não sei meu amor que mais o meu sangue acelera
se o saber-te longe entre os lírios astrais
se o ter-te tão dentro da orla dos meus lençóis...

mas não podemos demorar o futuro sem o matarmos
se quiseres serei carrasco ou anjo peregrino
e levarei devagar para o rio Letes este teu modo felino
de me fazer harpa e violoncelo em palavras
de fascínios

se quiseres afogo o meu nome devagarinho
já fui tantas imagens no espelho do tempo
agora sou só eu e tenho-te aqui comigo
sem ter mais de quem fugir ou quem matar

se quiseres estendo o sonho num tapete
e afagando a lâmpada do teu olhar de Aladino
apagamos a poesia deste tempo sem arte
para voltarmos juntos a ser meninos ou
secretos amantes ingénuos e clandestinos...

ANA

sexta-feira, setembro 21, 2007


TODO O TEMPO TENTO PERDER-TE

porém,

TER-TE É SÃO ASSOMO

uma inconfidência desculpável, espero...


Exmo. Dr. Paulo Neto e estimado amigo:

Não sei como manifestar-lhe a minha gratidão pelo email que teve a gentileza de me enviar. O passado dia 13 foi, segundo me dou conta pela sua descrição, um conjunto de cerimónias de elevada qualidade e significado, que tiveram a sorte de serem iluminadas pela carolice e a capacidade empreendedora de um conjunto de confrades, em que o verdadeiro espírito aquiliniano se perpetua. Se já me pesou não ter podido estar presente em Viseu naquela data, muito mais carente me senti depois de haver lido o seu relato.
Aceite pois a amizade e o reconhecimento do seu:

Aquilino Ribeiro Machado




(recebido a 18 do corrente)
Rara 1ª edição de 1952, de O Príncipe Perfeito, de Xenofonte, com tradução e prefácio de Aquilino Ribeiro, encadernada a vermelho e gravada a ouro, portadora de dedicatória autógrafa do Escritor a Carlos Pimentel, que ontem tive o gosto de adquirir após incansável pesquisa e descoberta, feita pela dra. Marina Rossas, gerente da Bertrand.



Edição da Assembleia da República de O Malhadinhas e Mina de Diamantes, da Bertrand, para o dia 19 de Setembro de 2007.