quinta-feira, abril 30, 2009

Um lugar largo. Não. Um largo num lugar. Um lugar no largo e uma pêga falida.
Nas meias de vidro corriam boulevards, aqui e ali estancados a verniz. A saia, curta de mais para os anos a mais, pregueada, caía com graça nas pernas cansadas. A camisola preta, cingida ao tronco ainda esbelto, tinha uma gola curta que tapava as gelhas do pescoço, e meias mangas deixando nus os braços finos, brancos, ao de leve penugentos. O rosto. Porém, o rosto. Uma amêndoa branca de Páscoa com uns cabelos negros, curtos, espetados, atrevidos, à garçon.Uns olhos limpos de pintura, de um castanho dorido, tão normais e frios que até escondiam a dor. Pequeno, o nariz, tinha nas narinas largas, frementes, aquele indício de lúxuria que os hommes à femmmes experientes logo lêem. A boca, não fossem as comissuras tristes, era uma romã madura e húmida. Contudo, o cansaço. E nas olheiras cinzeladas fundo, um desencanto. A frieza dos olhos era atirada com tal desdém aos clientes, que os repelia com um adeus antes de olá.
Não fumava, a pêga falida. Não calçava sapatos de saltos exorbitantemente altos, como as outras pêgas. Tinha as unhas curtas e uns dedos ágeis e longos, desprovidos de adornos. Era uma pêga afável.
Da esplanada do bistrot, no outro lado do largo, olhava-a com crescente fascínio. Seguia-lhe as passadas impacientes, acima-abaixo, no passeio cinzento, e dei-me conta de um querer que nenhum homem a levasse e de um desejo quase urgente de falar com ela. Mas, um pudor.
Como se diz a uma pêga falida Anda sentar-te comigo e não te preocupes que eu pago o que pedires para falarmos de uma infância inventada? E talvez dos rios que nascem lá longe, nas montanhas?
De repente. De repente, percebi que ela podia ir-se embora. Sozinha ou com algum cliente. E essa possibilidade inquietou-me.
Atravessei o largo em seis passadas, parei junto da pêga triste e disse Anda sentar-te comigo e não te preocupes que eu pago o que pedires para falarmos de uma infância inventada. E talvez dos rios que nascem lá longe, nas montanhas.
Olhara-me quando me percebera em sua direcção. Fixara-me quando me acerquei a centímetros do seu rosto. De súbito. Descansou-se-lhe o olhar quando olhou meus olhos. Ouvi-lhe um suspiro e uma resposta cansada Por 100 euros durmo sentada toda a noite e a dormir conto-te meia dúzia de infâncias.Por mais 50 banho-me no rio que desce na tua memória. Posso falar-te, ainda, e sem mais cobrar, das contas por pagar no dentista e no ginecologista. De uma filha que tem sete anos e setenta por cento de probabilidades de ser puta aos dezassete. Do javardo que paga para eu lhe ralhar e açoitar no cu-de-porco. Do touro que me dilacera e em cinco segundos vem-e-vai. Das dores nas pernas e de uma variz que cresce todos os dias. Do murro que há dias um bêbado me deu, me fendeu os lábios e partiu um dente. Posso estar silenciosa toda a noite e ouvir-te a solidão que tens na boca. Ou as gabarolices do que nunca fizeste. Pagas. Escolhes.
A voz era harmoniosa e clara. Em contraste com o que dizia. Entristeci-me mais. Tive um pouco de pena de mim por perceber quanto buscava uma mágoa alheia. Talvez por isso. Talvez. Peguei-lhe na mão, levei-a aos lábios e beijei-a com ternura Pago-te o silêncio e pago-te ainda para te sentares comigo num banco junto ao rio-de-faz-de-contas. Até que a geada nos pouse nos cabelos. Então, levo-te a casa. À tua. Digo-te boa noite à porta e até amanhã. E amanhã venho buscar-te à hora de fazeres o passeio. E assim, todas as noites, até o dinheiro acabar. Aceitas? Aceitas-me?
Aceito. Talvez te possa amar, disse-mo um rio. E os rios sabem histórias que contam às pêgas falidas, ou aos lírios, nas margens. Há camélias, na tua infância?
Não me lembro. Só recordo o fustigar das urtigas nas pernas pelos calções ao léu, quando brincava na quinta. E na tua?
Flores de plástico. Muitas. Tristes e perfumadas como uma bela boneca gorda, de olhos vidrados.
Dorme bem. Talvez te possa amar como um homem solitário sabe amar uma pêga triste. E ouve, se quiseres ponho-te lágrimas de verniz nas meias de vidro rôtas.
Não precisas. Chora-me só nos nós dos dedos.
Toma o teu dinheiro. Até amanhã.

A tralha

Um Inverno moroso que se atarda em despedida, e as minhas mantas que seguem meus passos casa afora. A mais ingénua expressão da velhice.
Os adornos. Adereços quase inúteis, salvo as cangalhas, claro, que ainda conferem alguma nitidez ao mundo, nitidez por vezes só indesejada. Olhar e não ver. O pretexto para o tacto.


pré-dilúvio


quarta-feira, abril 29, 2009

Lúcifer, o que anuncia a aurora...


amphi


segunda-feira, abril 27, 2009

"bichos", Tudela

(clique)

a luz, talvez...


desacatos de um pacato fim de semana


domingo, abril 26, 2009

Rosa Ramalho


Vida de cão ao Domingo.

O Argos
O Joyce


A Rosinha


Hoje, de manhã, fui ver a Mãe Rosa ao Sátão.
Tirei-a da cama, dei-lhe um abracinho, e fotografei-a, à má fé, ainda com um ar estremunhado (ia levando com a bengala!).
Na parede do quarto, uma rosa da avó Natividade Carreira, 'oleada' em 1916.

Visita do Kiko






sábado, abril 25, 2009

Ariane


A (des)memória humana...

"Écoutant, en effet, les cris d'allégresse qui montaient de la ville, Rieux se souvenait que cette allégresse était toujours menacée. Car il savait ce que cette foule en joie ignorait, et qu'on peut lire dans les livres, que le bacille de la peste ne meurt ni ne disparaît jamais, qu'il peut rester pendant des dizaines d'années endormi dans les meubles et le linge, qu'il attend patiemment dans les chambres, les caves, les malles, les mouchoirs et les paperasses, et que, peut-être, le jour viendrait où, pour le malheur et l'enseignement des hommes, la peste réveillerait ses rats et les enverrait mourir dans une cité heureuse."
Camus, A., La Peste, Gallimard, 1947

Trinta Anos Depois

Trinta anos depois querem tirar o r
se puderem vai a cedilha e vai o til
trinta anos depois alguém que berre
r de revolução r de Abril
r até de porra r vezes dois
r de renascer trinta anos depois.

Trinta anos depois ainda nos resta
da liberdade o l mas qualquer dia
democracia fica sem o d.
Alguém que faça um f para a festa
alguém que venha perguntar porquê
e traga um grande p de poesia.

Trinta anos depois a vida é tua
agarra as letras todas e com elas
escreve a palavra amor (onde somos sempre dois)
escreve a palavra amor em cada rua
e então verás de novo as caravelas
a passar por aqui: trinta anos depois.


Manuel Alegre, Na Liberdade, Antologia Poética, Garça Editores, 2004

Permanente Alforria

1. o paredão enfrenta o mar que agride
2. a gaivota sulca o ar que acolhe
3. o sol arreda a nuvem que corteja
4. o mar liberta a onda que revolta
5. a areia sorve a água que agrega
6. o pé pisa a concha que estranha
7. o corpo saúda a natureza que alenta
8. a solidão rodopia no ar que afaga
9. a manhã coalha-se no ar que afaga
10. o cansaço esbarra-se no quadro que confronta
11. o sábado esgota-se no ocaso que redime
12. a intenção queda-se no esgar que não se cumpre
13. o domingo chega na cópia que oprime
14. o homem só regista o tempo que o suprime. e eis
15. que a liberdade toa no peito o acto de ufano feito ave,
16. no infinito convocando ao vento a esperança
17. em Abril canto comum de silêncios incontidos
18. liberdade do poder íntegro. inteira alforria do ser,
19. que nega a agressão
20. e ao pé o direito de pisar
21. e as solidões rodopiantes
22. e esgotados sábados redentores
23. e cansaços esbarrados de confrontos
24. e esgares em rictos mal cumpridos
25. e cópias das supressoras opressões.

pn, Na Liberdade, Antologia Poética, Garça Editores, 2004

este é o meu 2.025º post.


sexta-feira, abril 24, 2009

A ignorância... de Bach a Baco.

... é atrevida!
Há na língua aquilo que chamamos "les faux amis", palavras ou expressões que pela sua semelhança de significante nos induzem a um significado outro que o detido, gerando um equívoco semântico.
Não sou um melómano apurado. Antes, alguém que gosta de música e a ouve com frequência. Além disso, até tive na fac uma cadeira de História da Música (saudoso Dr. Faria).
Porém, a minha incultura musical revela-se com frequência em situações deste teor:
Sempre pensei que as Bachianas, do grande compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos eram uma homenagem a Baco.
Hoje soube que as Bachianas foram e são uma homenagem muito sentida ao músico e compositor que Villa-Lobos mais que todos admirava: BACH !
É caso para citar Anaïs Nin: Cada um vê o que tem dentro da cabeça!
Qui pro quo(s) deste teor devem-nos levar a precauções extra contra as evidências servidas de bandeja (mesmo que até seja argêntea, a dita) e que passamos a ter (sem fundamento factual, apenas por comodidade ou comodismo) por inquestionadas verdades adquiridas.
São situações destas que nos levam, também, ao imperativo moral de sentir vergonha pela presunção do saber, e que bem servem para nos reduzir à insignificância, por vezes esquecida.
E já agora, também, a sermos mais criteriosos, nesta era plurívoca da hiper-informação, que tão assazmente nos conduz à hipo-assimilação.
Felizes os que têm a humildade para aprender todos os dias alguma coisa com quem mais sabe!

F.Pessoa (1930)

A tua carne calma
Presente não tem ser.
Os meus desejos são cansaços.
Quem quero ter nos braços
É a ideia de te ter.

quinta-feira, abril 23, 2009



quarta-feira, abril 22, 2009

Quadra à moda antiga

Eu, assim desnudo, a teus pés quedado,
A sombra sou do vil ser em amo erguido.
Aio agora, só, vergado ao vão passado,
Servo zeloso de um penar fingido.

diálogo (in)existente

És a que espero?
Não sei. Sou a convocada.
Porque acudiste?
Na tua voz ouvi meu tom.
E o som áspero do desejo?
Ausentou-se das palavras. O chamamento é puro.
Fica. Tenho o sal da terra e a cal da arca.
Já não é, pois, regra, continuar só?
A regra continua só.Ausenta-te das palavras.
Deixá-las-ei no olhar.
Vendar-te-ei.
E os outros sentidos?
Assim se exaltarão.

2 notas

Nota I:

Comprei ontem um cd de Mozart, "Música Maçónica".
Da Philips, com 18 cantos, cantatas, música fúnebre, etc., lembra-nos que o músico e compositor foi admitido como membro da maçonaria vienense em 14/12/1784. O que muito o ajudou, uma vez que o próprio imperador era pró-maçons, apoiantes entusiastas da sua política reformista.
Nota II:
De F. Pessoa, poema de 1930 (morre a 20 de Novembro de 1935):

Tirem-me a coleira de prata *
Com que fui cão do Destino
(...)
Quero beber as estrelas
Num dos cornos do Diabo!

(reflictam sobre o seu teor)

* ao lado escreve 'lata '

Um dos seus últimos poemas, escrito pouco antes de se finar:

Levantar-me da cadeira?
Que canseira!
Fazer um esforço a valer?
Para conquistar o quê?
A glória? A ciência? O poder?
O que é que tudo isso é?

Pastor que não és ninguém
Porque ninguém de ti cura,
A frescura que a tua alma tem
Tenho-a também, mas sem frescura.
Mas ao menos guardo
A fidelidade à inocência,
No que não faço ou no que tardo.
Que o Diabo leve, porque é dele a ciência!



BOM DIA!

terça-feira, abril 21, 2009



segunda-feira, abril 20, 2009

(enviado pela I. IVO)

domingo, abril 19, 2009

quadríptico com-placência


































as paredes

São muitas as minhas paredes.
Um dia, ingénuo, cri
Que as minhas paredes deviam ser brancas
.

Mas noutro dia, o branco era muito branco.
Então, nas paredes brancas, quase
Impolutas e sem mácula, na cal pura
Preguei o sentir de um, a cor de outro
Um rio que passa e um sereno monte
Gente e até martirizados santos.
E quedei-me a olhar as paredes
E a ver a paisagem dos outros
E os outros
Dentro de parte de mim e assim
Serenei o tempo agreste dentro
Das minhas paredes brancas.

RR, "Odes"

Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas --
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

sábado, abril 18, 2009

Manuelina pregação

A Anita mandou-me esta foto (sem resolução - os telemóveis são máquinas fotográficas?!) que me tirou nos Jerónimos, num momento palavroso...

mise en abîme


sexta-feira, abril 17, 2009

O Kiko...

é o meu primeiro sobrinho-neto...
com 9 meses e 2 dentes...
e o pai-Nuno.
Gente bonita, não é?
(fotos da mãe-Ana)


O Argos...

... com o olhar tristinho de quem está farto de maleitas.

Fálgaros

Estas estranhas doçarias são específicas de Tabosa e do Carregal, de Sernancelhe. São bolos "ricos" que levam no âmago queijo fresco. Hoje ninguém falaria deles, não fosse Aquilino Ribeiro perpetuá-los na sua obra.
Ontem, mão cuidosa, trouxe-me uma ceira deles. Que nunca lhe doa, meu amigo, a mão de dar...
Em baixo, à direita, expectante, o Joyce tenta perceber o teor do conduto.


quarta-feira, abril 15, 2009

Dia de ciclóstomos...

...no Artur, Poço de Santiago, em Sever do Vouga (o melhor!), que asseverou: "Só sirvo lampreia até Maio, quem não comeu, comesse!"
O Artur só tem este prato, é sazonal, e não serve bebidas, nem sobremesas. Hoje, foi à bordalesa. Deliciosa!
Para marcação: 965523643 / 234551276

Da esq. para a dta. Ten.-Coronel Amaral Dias, Francisco Chapelle e Arqº Quito Torres (parte da equipa).

O anfitrião, à sorrelfa e de má fé. "Estás perdoado, Pedro! "
Ten.-Cor. Pedro Bandeira Calheiros, em gozo de merecidas férias do seu trabalho na Guiné, pela UE.

Hum, estas cobrassssssss!
O meu pratinho (só três vezitas cheio) e de fundo, com ar de senador romano, o Chapelle.
O Pedro investigando o arroz com o ar de très fin gourmet (que é!)
Pois é! Como o Artur não tem bebidas, cada confrade deve levar seu solvente.
Que estará ali a fazer a coca cola light? Para quem terá sido?
Claro, para o pn, apesar do renovado gozo dos convivas...
Ninguém é perfeito!
O Quito, com ar enjoado (tche! que porcaria !) a abrir-me a botelha.

Ao fim, muito empertigadinhos, apaziguados, depois do saborosíssimo repasto, o Artur condescendeu em oferecer-nos um bule de cevada.
Ah, valente!













terça-feira, abril 14, 2009

A mão, hirtos os dedos, ao céu erguidos,
Da terra, o adeus estremece.